segunda-feira, 20 de junho de 2011

Artigo de Opinião: OS BODE EXPIATÓRIO



Não é novidade para ninguém que, em uma língua, a diferença entre o que se fala e o que se escreve está nítida até para as pessoas com pouquíssimo grau de escolaridade. No entanto, contrariando esta lógica, a publicação do livro “Por uma vida melhor”, aprovado pelo MEC para ser distribuído em escolas públicas, no ensino de Jovens e Adultos, revelou a revolta de alguns sábios e letrados quanto ao conteúdo de apenas um capítulo do livro, o que trata justamente da diferença entre a escrita e a fala, mais especificamente no que se refere à “subversão” da concordância nominal e verbal em relação aos ditames da Gramática.
Um dos argumentos dos “sábios” é que o livro ensina a falar errado. Ora, o próprio uso do termo “errado” já dá o tom de toda a manobra nefasta empregada pelos opositores da publicação do livro, porque evidencia uma dicotomia autoritária do uso da língua portuguesa, um maniqueísmo histórico entre o bem culto e o mal popular. O livro não ensina ninguém a falar errado, porque apenas apresenta, por exemplo, uma construção como “os livro...” aceitável dentro de seu universo. A norma culta, aliás, é o que dirige todo o livro, não se compreendendo o porquê de tanto alarde, de tanto ódio contra o reconhecimento do que é fato consumado e irreversível. Jornalistas, comentaristas avulsos e gramáticos, levantaram a bandeira da moral e dos bons costumes linguísticos contra o que já deveria ser (porque é) natural: a utilização e a existência de variedades lingüísticas. Eles evidenciaram que sequer leram a obra, que ouviram dizer que não sei quem disse, que não sei quem comentou, e isso com um ar de verdade que convenceria até um ateu de que Deus existe...Francamente!
Os autores de “Por uma vida Melhor” deram uma mostra de humanidade, de verdadeira educação cidadã ao alertarem os alunos para o fato de que seus regimentos linguísticos, trazidos de casa, da rua ou de onde for, não estão “errados”, mas que precisam estar adequados à determinadas situações para que o preconceito linguístico contra eles mesmos não se deflagre mais evidente, já que uma das formas de menosprezar uma pessoa neste país é por meio da estigmatização de sua fala. Isto, por uma lógica completamente infantil, já induz a conclusão de que, para se ter o reconhecimento do ambiente onde determinadas construções podem ou não serem utilizadas é preciso que o aluno TAMBÉM se aproprie da norma culta da linguagem, o que enriquece ainda mais seu grau crítico e a compreensão do funcionamento do que sai de sua boca através de palavras. Assim, é preciso, sim, apoderar-se da norma culta. Os sábios não pensaram assim. Os sábios não pensaram. Sábios pensam que pensam o quê?
A televisão, que deveria ser responsável, utilizando-se de seu poder irrestrito de difundir tudo o que lhe interessa, tratou o caso como um grande absurdo, um câncer educacional, o reforço da ignorância por parte do próprio governo para com seus governados. Que bobagem! Entre o aparelho e o telespectador há muito mais mistérios que a nossa vã audiência imagina. Lula falava errado mais pelo desconhecimento das regras sacrossantas das gramáticas que pelo apelo de se aproximar de seu povo, embora esta segunda possibilidade não se descarte de todo.
A quem esta defesa da norma culta interessa? Há motivos políticos entranhados nas manifestações da intelectualidade conservadora? O que há de partidário em querer mostrar para os brasileiros que sua linguagem nunca foi, não é e nunca será errada? Quem concorda em concordar que a concordância concorre com o que ocorre entre várias ocorrências? Eis algumas questões, feridas abertas e, ao que parece, ainda não cicatrizadas pelo ranço doentio de quem vê na Gramática normativa a única maneira de expressão possível dentro de um leque de possibilidades absolutamente grande, tamanha as diferenças sociais, culturais e econômicas deste Brasil.
Os bode expiatório (desculpem-me, sábios) não são os autores do livro. Os bode são justamente a grande maioria da população brasileira que tem, mais uma vez, usurpado um de seus direitos, o de ter acesso aos esclarecimentos a respeito do caso e ter a liberdade de lidar com sua história linguística sem a histeria megalomaníaca da grama ártica, fria e rasteira, dos grandes teórico-retrógrados. A gramática não pode ser um juiz supremo. Tem lá sua importância como modalidade de dar estabilidade à língua, mas sem nunca manifestar a desumanidade de imprimir a milhões de pessoas “a arte do bem falar e escrever”.
Não é só por uma vida melhor. É por um país maior, no sentido democrático da palavra. Se a “vida melhor” estiver dentro de uma fórmula de bolo impregnada de infortúnios ditatorias, o bolo continuará queimado pelas fogueiras inquisitoriais dos puristas. Precisamos de mais açúcar.



Teófilo Leite Beviláqua 

3 comentários:

  1. Teófilo,
    o seu texto está um primor. Se eu tivesse meios, faria com que ele fosse publicado em alguma revista ou jornal de grande tiragem.
    Parabéns!!!!!!!!!!!!!
    abraços,
    Aluiza

    ResponderExcluir
  2. Ah, a imagem escolhida também é bastante apropriada à questão rsss.

    abraços,

    Aluiza

    ResponderExcluir
  3. Belíssimo texto, a imparcialidade com que escreves nos mostra a realidade sem "maquiagem", é notório que tal repercussão foi nitidamente político. Com o intuito de vir a macular a imagem do "Lulismo" que ainda permeia o governo Dilma, em detrimento do nosso sistema educacional tão sofrido e de nós brasileiros que não podemos ficar só assistindo a tudo isso como meros coadjuvantes.

    ResponderExcluir

Comentem! Participem das discussões!